Não é novidade nenhuma que estou a passar por uma crise existencial no trabalho. Já há uns tempos
desabafei aqui as minhas frustrações, mas na verdade a culpa não se deve só à falta de criatividade inerente à tradução técnica e à rigidez imposta pelos clientes. A verdade é que eu me queixo sempre muito e o
queixume da última sexta-feira me irritou um bocado, mesmo tendo partido de mim. Sou uma eterna insatisfeita, não há nada a fazer. Ou há?
Vamos a ver:
1. Eu gosto do que faço. Faço isto há 6 anos, 5 dos quais na mesma empresa. É o meu recorde de sempre. Foi mais ou menos para isto que eu estudei, mas se formos a ver bem, os cursos de Línguas e Literaturas Modernas são dos cursos mais versáteis que há: tanto podem sair fornadas de professores, tradutores e secretárias, como empregados de mesa na Pastelaria Suíça e mulheres-a-dias em casas de diplomatas alemães. Mas, bom, isto de fazer aquilo para que se estudou só é importante para a minha mãe, portanto vejo isso apenas como uma feliz coincidência, bastante útil na altura de apresentar credenciais.
2. À parte de gostar do que faço, gosto dos meus chefes e dos meus colegas. Apesar de trabalhar em casa e só os ver de três em três meses, quando vou ao escritório sou sempre bem recebida, dou-me bem com os meus colegas e só tenho pena de nunca ter conseguido estreitar a ligação com alguns. Os meus chefes são os chefes mais porreiros que há, e tenho a certeza que nunca vou encontrar chefes tão compreensivos e descontraídos.
3. Até agora, reúno duas das condições essenciais para ser feliz no trabalho: gostar do que faço e ter bons relacionamentos no trabalho. Mas eu não trabalho no escritório, trabalho em casa. E isto envolve uma disciplina mil vezes maior. Confesso que às vezes me distraio, confesso que às vezes tenho de lutar contra mim mesma para me concentrar, confesso que é tentador ligar o Skype no telemóvel e alargar a hora de almoço, fazendo de conta que já estou no "escritório". Mas a minha experiência de vida diz-me que a mentira é curta e que seria sempre nessas alturas que o meu chefe me iria mandar uma mensagem no Skype a pedir qualquer coisa urgente para daí a 10 minutos. Por isso, posso dizer de boca cheia que nunca lhes minto, que cumpro o meu horário escrupulosamente e que fico roída sempre que me contactam quando estou na minha pausa do café, pausa esta a que tenho todo o direito e me faz muita falta. Isto para dizer que os meus princípios acabam por falar mais alto do que a minha preguiça, portanto até nesse campo não me posso queixar.
4. Então do que me queixo eu, afinal? Do salário? Bom, apesar de desde que engravidei, há 3 anos, nunca mais ter tido um aumento (e antes disso tinha sido aumentada três vezes em dois anos) e agora, com uma nova gravidez já anunciada, a licença de maternidade que se avizinha e a redução de horário a que tenho direito até ao primeiro ano de vida do bebé, bem que posso esperar por novo aumento até daqui a outros três anos. Mas, como o homem da casa bem gosta de me lembrar, fui agraciada com a vinda para casa que, mesmo não saindo dos bolsos e da iniciativa da empresa, acaba por ser um aumento de 150 euros, que era mais ou menos o que eu gastava por mês em gasolina. E, vendo bem, ganho acima da média do que se costuma pagar por aí aos tradutores internos. Portanto, não, nem neste campo me posso queixar muito.
4.a) Posso mudar-me para as Bahamas sem ter de me despedir, desde que consiga conciliar o fuso horário com o horário de expediente português. OK, se calhar as Bahamas não foram um exemplo feliz...
5. E as responsabilidades? Bom, acho que é aí que a porca começa a torcer o rabo. Antes de engravidar, fui promovida a revisora. Revi umas coisas e tal, andava feliz, mas ao mesmo tempo muito insegura com medo de falhar, mas não acho que a coisa tenha corrido mal, tanto que os trabalhos que saíam directamente das minhas mãos raramente vinham com reclamações, pelo menos naquele curto espaço de tempo. Depois meti baixa, tive o bebé e quando voltei, há quase dois anos, se revi dois trabalhos foi muito. O meu marido, o meu guru da vida, disse-me para falar com os meus chefes, perguntar-lhes o que havia mudado, se era a qualidade do meu trabalho que decaíra, mas eu, com medo de uma resposta positiva ("sim, desde que és mãe deixaste de ser boa profissional"), acabei por nunca ganhar a coragem de falar com eles sobre isto. E o tempo foi passando. Sinto que fui relegada para segundo plano, para a tradutora que é fiável e boa para traduzir certo tipo de textos, aquela que desenrasca em época de férias e em quem podemos confiar, mas que não é suficientemente boa para lhe confiarmos certo tipo de clientes ou textos. E isso entristece-me. É claro que o facto de estar em casa também ajuda à não promoção a revisora, longe da vista longe do coração, e nem pensar em pôr uma funcionária que trabalha em casa a contactar directamente com os clientes. Do ponto de vista da entidade profissional, percebo isso perfeitamente. E, vendo bem a coisa, eu não tenho perfil para contactar com clientes, prefiro estar atrás das cortinas e fazer o meu trabalhinho em paz. Por isso, é capaz de nem ser tão mau assim e estar bem adaptado às minhas necessidades.
Então, mas afinal de que porra é que eu me queixo mesmo???
(to be continued)