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Bolas de Berlim... sem creme

Um blogue que não é de culinária (apesar de ter algumas receitas)

Bolas de Berlim... sem creme

Um blogue que não é de culinária (apesar de ter algumas receitas)

Tudo o que eu quero para o novo ano

Tenho muitas coisas que gostava de fazer em 2014, não por ser a passagem de calendário, mas porque coincide com uma série de marcos e eventos aleatórios. Coincide, por exemplo, com as 6 semanas após o parto em que a minha vida anterior ficou mais ou menos suspensa por motivos naturais. Uma das coisas que vou poder retomar em Janeiro é a actividade física - o ginásio e as corridas. Já retomei as caminhadas de trinta minutos, só para não começar a doer e para avaliar a minha condição física. E, depois de uma gravidez em que engordei mais do que a conta e de dois meses e meio de repouso forçado, a minha condição física está pelas ruas da amargura... Mas em Março lá estarei, de novo, a atravessar a ponte a correr mais ou menos depressa, que a velocidade não é coisa que importe.

Este ano vamos mudar novamente de casa. Não que não gostemos desta, muito pelo contrário, é das casas em que já vivi das que mais paz me trouxe, mas porque decidimos mudar de vida, fazer a trouxa e ir para fora dos subúrbios, para longe de Lisboa ( mas não tão longe que seja preciso uma excursão para vir à capital), para a outra margem, para perto da praia e da Arrábida, para a terra de mar, pescadores e da farinha torrada, pertinho do Cabo para onde levar as visitas, pertinho de tudo o suficiente para poder levar as miúdas à escola a pé ou de bicicleta. Para tal, decidimos fazer algumas remodelações na casa, torná-la mais habitável e acolhedora, e vamos passar o primeiro semestre do ano bem entretidos com este projecto.

Fora isso, só quero ser feliz. 
Lugares comuns à parte, quero aprender a sorrir mais, a falar às pessoas como se estivesse sempre muito contente por as ver, fazer tudo como se tudo fosse uma descoberta, ter aquele entusiasmo pelo dia-a-dia como o têm as pessoas a quem a rotina não incomoda, porque a minha vida, a vida de quem trabalha em casa, a vida de mãe de duas crianças, é feita de rotinas e isto não tem de ser necessariamente mau. Quero ser uma melhor mãe, mais paciente, mais compreensiva, mais atenta e criativa para saber resolver as birras mais parvas do mundo com um sorriso e uma festinha e zangar-me menos. É mais difícil do que pensei, zangar-me menos, mas também já reparei que há dias em que basta uma noite mais bem dormida para tornar tudo mais fácil.
E depois há a minha filha mais nova, a bebé, a Alice, de quem já gosto tanto mas tanto que às vezes só me apetece parar o tempo em mim para a ver crescer sem distracções. E com ela, com o novo mundo que ela me trouxe, veio também a culpa pela outra que já cá estava, a capacidade de cultivar o equilíbrio de afectos, que isto do amor multiplicar-se não é tão imediato  e óbvio como dizem, que é preciso ter consciência de que agora são duas com necessidades diferentes e formas de chamar a atenção diferentes e é tão difícil ao princípio termos a disponibilidade necessária para tal, ocuparmos o coração da mesma medida com estes dois amores, que muitas vezes já senti que não era capaz. Não foi, confesso, o Natal com mais calma e paz interior que já tive. É um turbilhão de sentimentos que me comove e assoberba e verga perante as exigências emocionais de ter sido mãe há pouco tempo. Mas, uma vez capaz de pilotar este barco com mais destreza e tranquilidade, haverá espaço para todos dentro de mim, para elas, para ele, para mim, e quando isso acontecer, vou ser uma mãe do catano para as minhas duas filhas mais lindas, que quando olham no fundo dos olhos uma da outra me enchem o coração daquela alegria parva de mãe e nesses momentos julgo saber em mim o segredo de fazer deste o melhor trabalho do mundo.
Ser feliz é mesmo capaz de ser isto.

Bom 2014.

A culpa foi do Trifle

Sábado. Festa de aniversário da sogra com direito a jantar pré-festa e a almoço pós-festa. Uma alarvidade e uma indecência, se considerarmos a quantidade maléfica e a aparência perniciosa das sobremesas. Parece que também houve leitão, sopa de peixe, rissóis, pastéis de bacalhau e salada de polvo, mas foi coisa que não retive na memória. Lembro-me apenas daquele Trifle ma-ra-vi-lho-so, do outro Trifle também quase tão bom, da sobremesa de suspiros estilo Trifle (nota-se um padrão nesta família), da tarte de maçã e da deliciosamente enjoativa mousse de Oreo. Comecei no Trifle, acabei no Trifle, pelo meio ainda fui ao Trifle. Por mim ter-me-ia escondido atrás da tenda das bebidas com a taça de Trifle na mão e a concha da sopa, mas algo me impediu de o fazer. Certo é que há qualquer coisa de indecente na relação de uma grávida terminal (por que é que isto me soa a doença?) e uma sobremesa cheia de doces. E no modo como os outros nos olham, de sorriso aberto, quase a esfregarem-nos a mão nas costas e a darem-nos chapadinhas amigáveis, como quem diz "Isso, aproveita agora... Sua lambona!"

Ora.

Um longo texto autobiográfico ao estilo yes, you can!

Pensei muito antes de escrever este texto. Pensei se o deveria escrever. Pensei se me sentiria bem comigo depois de o escrever. Pensei se me sentiria aliviada depois de o escrever.  E a resposta a todas as perguntas foi sim, sim, sim. Na verdade, a par de uma necessidade imensa de partilhar a minha alegria, acho que procuro uma espécie de closure. 2012 foi o ano em que decidi enfrentar o elefante na sala e resolver os meus... chamemos-lhes conflitos interiores. Estou no bom caminho. Mas há um passo que falta. Vamos a isso, então.

Muitos dos que me lêem e conhecem não saberão, outros já terão detectado algo, um arrastar no andar, um coxear que só se nota às vezes, provavelmente aleijou-se, provavelmente as pessoas são polidas demais para perguntarem. Eu agradecia que não perguntassem. Na verdade, é um assunto que me incomodava tanto que quando um estranho abordava a questão, eu mentia. Passei 32 anos da minha vida a esconder, a fugir e a mentir, mas em 2012 resolvi deixar de o fazer, ou em certa medida, vá, e cá estou eu para contar a minha história a quem quiser ouvi-la.

Nasci com um problema no pé, um problema que parece que afinal é bastante comum acontecer à nascença: estima-se que um em cada 1000 bebés nasça com pé boto (basicamente, o pé nasce torto, completamente virado para fora ou para dentro). Eu não fazia ideia destas estatísticas. Nem fazia ideia de que pode ter uma influência genética importante e, logo, uma carga hereditária. Quando fiquei grávida nunca coloquei a hipótese de que a minha filha pudesse nascer com o mesmo problema do que eu, porque sempre pensei que não fosse genético e se devesse apenas a uma má posição intra-uterina. Foi sempre isso que os meus pais me disseram e que um médico, actualmente, corroborou. Mas esse médico também disse: pode ser hereditário e pode não ser, pode ser genético e pode não ser, não se sabe bem. Mas também me assegurou que hoje em dia a medicina está tão avançada que os métodos medievais usados nos anos 80 passaram à história e agora uma única e simples cirurgia resolve a situação, sem deixar sequelas na vida adulta. Já não são precisas as oito cirurgias a que fui submetida dos 11 meses aos 16 anos, nem os longos Verões de recuperação, nem temporadas inteiras na sala de fisioterapia nem uma longa adolescência de dores de pé e de alma (os miúdos são tão cruéis quanto frágeis e sobre isto não há muito mais a dizer).
Se tive uma infância de merda? Durante muito tempo achei que sim. Mas a minha infância está tão recheada de todos os cheiros e sabores e memórias e lugares e pessoas marcantes como a infância de qualquer um de vós.

Mas tive sempre muitas dores. Dores que com a idade se vão agravando, dores que são uma constante sempre que viajo (o que implica longas caminhadas e muito tempo em pé) e sempre que o tempo muda (sim, dores de velho...). E sempre achei que, não sendo diferente dos outros na maior parte das coisas,  havia coisas que eu nunca poderia fazer, como correr, patinar, fazer yoga, fazer esqui. Mas especialmente correr. Sempre que tentava, nesse dia ficava sem me poder mexer. Curiosamente, nunca me lembrei de tomar analgésicos. Sempre recebi a dor como parte de mim, como natural, constante e inevitável. A par da dor, os complexos com namorados, as difíceis idas à praia e tudo o resto com que não me vou alongar muito porque também isto já vai fazendo parte do passado.

Até que um dia conheci aquele que é hoje o pai da minha filha. Foi ele que, aos 28 anos me levou a esquiar pela primeira vez e me mostrou que era possível (até a segunda vez as hormonas do pós-parto terem estragado tudo). Foi ele que, aos 29 anos, me ofereceu uns patins e me mostrou que era possível (até que um embate de cabeça em que senti, literalmente, o crânio a chocalhar, arrumou com os patins de vez). Também foi por volta dessa altura que me inscrevi no yoga e encontrei uma professora, doce e competente, que me acompanhou e fez um programa personalizado para substituir os exercícios em que sentia mais dificuldade, como tudo o que pedisse equilíbrio na perna direita. Voltando ao marido, foi ele que, aos 30 anos, para manter uma sequência cronológica, me mostrou que era possível fazer longas caminhadas, caminhadas de duas horas, de 4, 6 e 8 km, sem tanta dor quanto isso. Foi ele que, finalmente, aos 32 anos me mostrou que era possível correr 30 minutos sem parar e sem tanta dor quanto isso. Mais importante do que isso, foi ele que me mostrou que eu podia acreditar em mim e deixar de ter tanta peninha de mim mesma. Esta é uma das razões por que eu gosto tanto dele, o admiro tanto e quero tê-lo ao meu lado sempre!

De cada vez que completo 30 minutos de corrida sem parar, é mais um degrau na minha auto-confiança. Por incrível que pareça, correr, na qualidade de actividade que eu julgava impossível dada a minha condição física, foi umas das coisas que, no ano que passou, me começou a dar a auto-estima e a auto-confiança perdidas na adolescência. É como se sentisse que, conseguindo isto, consigo tudo. Se consigo correr 4 km, também consigo correr 8 ou 10. Se treinar, hei-de conseguir. Está tudo na minha cabeça, não nos meus pés (a esta altura está ele a pensar "Mas isso é o que eu te ando a dizer há cinco anos!"). Por isso, se eu consigo, qualquer um de vós com os dois pés no sítio e sem cicatrizes nem ossos remexidos também consegue. Não querer é uma coisa, não conseguir é outra completamente diferente. Ai de quem agora me venha com desculpas esfarrapadas!!

Há pouco tempo, voltei ao ortopedista, por causa de uma dor na anca já quase resolvida, que me desmistificou uma série de dúvidas e me mandou fazer "qualquer coisa, corra, nade, ande de bicicleta, mas mexa-se!" 
Fiquei animada. Comecei a procurar mais informação na net e de, repente, encontrei uma série de pessoas em pior estado do que eu, ou a quem as cirurgias não endireitaram o pé, mas que correm que se fartam e participam em corridas a sério. Encontrei, inclusivamente, um iron man com o pé em bem pior estado do que o meu mas com uma determinação admirável. Aos 32 anos espero que não seja tarde demais para voltar a tentar reabilitar os músculos entorpecidos, para correr a minha primeira corrida a sério, para exercitar o pé como gente grande. Eu sei que há alguém que quer que eu diga que vou voltar a patinar e a esquiar, mas não há mesmo espaço para isso agora. Tudo a seu tempo. Quem sabe daqui a um ano não vou querer voltar a experimentar?

E quase a chegar ao auge da catarse: se isto não é o texto mais positivo que escrevi, esperem só até completar a minha primeira corrida de gente grande!

P.S.- Ah, e este blogue comemora hoje um ano. Não foi de propósito, mas este texto também funciona como uma espécie de festejo do blogue.

Mais informações sobre o pé boto aqui e, em inglês, aqui.